sábado, 15 de agosto de 2009

Maria Antonieta, a ré

"Danton, o homem mais enérgico e sem escrúpulos de toda a revolução, ergueu a bandeira sanguinolenta do Terror e tomou a horrenda decisão de fazer trucidar no cárcere, no decurso de três noites, todos os prisioneiros que pudessem ser suspeitos [...] Dois daqueles canibais arrastaram pelas pernas o tronco nú, um outro levantava nas mãos as vísceras sanguinolentas; um terceiro ergueu sobre um varapau a cabeça, coberta de uma palidez esverdeada, da desgraçada princesa". Stefan Zweig


Por interesses políticos, uma aliança foi acertada entre os Bourbons e os Habsburgos, até então inimigos. O casamento do herdeiro da coroa francesa – os Bourbons, com uma princesinha linda, encantadora toda graça, que corria e brincava com os irmãos e amiguinhos por todo palácio e jardins do castelo dos Habsburgos. Ela não gostava nem de livros, nem de aulas.

Em 1769 finalmente, chega a carta oficial, o pedido de casamento. A maior pompa presidiria a união. Luís XV encomendou dois carros de um esplendor nunca visto: madeira preciosa, vidros de cristal, forração de veludo. Para o delfim (e toda a corte), novas casacas, trabalhadas com pedras preciosas. O brilhante Pitt, o mais famoso de então, ornaria o chapéu de Luís XV.

O embaixador francês chega em Viena para o pedido formal, prenunciando o fausto:
  • 48 carros puxados por seis cavalos cada um
  • 117 homens da guarda com librés de luxo
A mão da princesa foi pedida em sessão pública, e ela teve que renunciar aos seus direitos austríacos. Bailes sucederam-se nos palácios. Em 19 de abril, o casamento por procuração aconteceu na igreja dos Capuchinhos. Em 21 de abril tem lugar o jantar íntimo com a família e a despedida. A mãe lhe entrega uma carta, que deveria ler todo dia 21 de cada mês, e outra em particular ao Rei, pedindo relevar os catorze inexperientes anos de sua filha.

A cavalgada prossegue, 340 cavalos devem ser trocados em cada estação de correio. Atravessam a Áustria, a Baviera, se aproximam das fronteiras. Um edifício curioso está sendo erguido numa ilha, no centro do rio Reno. Todo um ritual de despojamento é criado para que ela rompa o mais tênue laço com a casa d'Áustria. A etiqueta exigiu, que nenhum fio de manufatura austríaca a envolvesse. O conde de Satarhemberg, vestido à moda francesa, a conduz até o salão de entrega, onde a aguardava a delegação dos Bourbons.

De todas as aldeias e povoados o povo acode para saudá-la, encantados com seus cabelos dourados, olhos azuis, o sorriso infantil. Do chafariz da praça, jorra vinho no lugar da água; bois inteiros são assados. Nas árvores luzem as bolas coloridas de vidro com velas acesas. O monograma entrelaçado do delfim e da delfina brilham na noite. Ela escreveu para mãe:
"Que felicidade a nossa de poder conquistar o afeto de um povo inteiro. Não há nada mais preciosa, bem o compreendi, e nunca o esquecerei".

Ela, desde esse dia, ficou fascinada por Paris. Fausto e requinte imperou no jantar nupcial partilhado por 6 000 nobres. O enfim sós não levou a nada. O jovem noivo escreveu em seu diário: "Rien!". Assim por 2 000 noites, sete anos dos 15 aos 22 anos, ela permaneceu virgem.

Dedicou-se aos centros de diversões, teatros, bailes à fantasia, porque a máscara era a única liberdade aos rígidos costumes reais que lhe impunham. Podia conversar, dançar. Divertiu-se, sempre distante e ignorando o povo. A menina de 15 anos cedeu lugar a uma atitude cheia de majestade e altivez. Não podendo apaixonar-se pelo marido, apaixonou-se por si própria, sentenciaram seus críticos. Mesmo antes de ser rainha, quis ser soberana pela sua graça e beleza. E o conseguiu.

Em agonia o velho rei morre. Ela e o marido ouviram o rufar dos tambores. Os oficiais desembainharam suas espadas, e os gritos como vaga avançaram até eles:
"Morreu o Rei! Viva o Rei!"
Apesar dos contrastes, das grandes diferenças entre eles, formaram um casal aliado e cordial. Ser soberana, tinha para ela um só sentido: ser livre. Escreve para mãe:

"Embora Deus já me tenha feito nascer no posto que hoje ocupo, não posso deixar de admirar as disposições da Providência escolhendo a mim, última dos vossos filhos, para o mais belo reino da Europa!"

Porém sua juventude, aliada à fraqueza do marido, precipitaram-na na futilidade, desviando-a de sua missão de soberana. Passava seu tempo escolhendo seus vestidos, pois nunca poderia repetir um só deles. Tornou-se escrava da moda, e o luxo dominou a corte como devastadora epidemia. Maria Teresa, sua mãe, cansou de censurá-la. Os cuidados com o cabelo e o penteado tornou-se detalhe classificatório de alta estirpe e distinção. Outra paixão da rainha eram as jóias, que a levou a contrair dívidas. Depois entregou-se aos jogos. Ganhou do marido, um pequeno palácio – o Trianon, para fugir da vigilância de Versailles, nesse castelo podia ser feliz e livre.

Poderia ter tido a seu lado a nobreza, mas tratou-a com frieza. O povo a teria idolatrado, mas ignorou-o. Quis ficar sozinha na felicidade, depois estaria só na tragédia. Nessa altura, encontrou aquele, o único que amaria, e por quem seria adorada. Estava com 22 anos em 1777.

Em 30 de agosto de 1778, o matrimônio consumou-se. No ano seguinte, a rainha está grávida. Deu à luz em 18 de dezembro de 1779, a uma menina. Em 1781, nasce o herdeiro do trono. Por mais duas vezes ela foi mãe. Em 1785 nasceu o segundo filho homem, o futuro Luís XVII, e em 1786, uma menina que só vive 11 meses.

A revolução reunia-se no Palais Ruyal do duque de Orléans. A ele unia-se o coro de maldades das 3 tias. Essas duas frentes atacavam a soberana. De escanteio, o conde de Provença, irmão de seu marido, o que viria a ser Luís XVIII, aguardava sem decidir-se.

  • o rei convoca a Assembléia Nacional,
  • Versailles volta a ser capital em 1789
  • morria o delfim de 6 anos de idade
  • a 14 de julho é tomada a Bastilha
  • a 4 de agosto proclama-se os Direitos do Homem
  • rebenta um tumulto em Paris, mulheres avançam sobre Versailles
  • os reis foram se hospedar nas Tulherias

A infelicidade instaurou nova etapa na vida dessa mulher singular. Pela primeira vez, começa a meditar e a refletir. Só aos 35 anos compreendeu seu verdadeiro destino: aparecer diante da História como rainha e como filha de Maria Teresa, revestiu-se de audácia e grandeza. Sente correr o sangue de todos os seus antepassados. Ser uma Habsburgo, herdeira e descendente de antiquíssima honra dos cesares, fez com que ultrapassasse a si própria.

Numa noite fatídica, 20 de junho de 1791, tentou-se uma fuga. Um homem se ligará a ela como fiel amigo, seu único amor – o sueco Hans Axel de Fersen, até o fim cometendo erros táticos, outras vezes, atos heróicos, procurou salvá-la do horrível destino. Ela foi cruel com a Revolução, e esta a fez pagar cruelmente. Descobertos, voltaram escoltados e comprimidos na carruagem. A família real foi transferida para um cárcere. O rei Luís XVI, processado, foi condenado à morte. A ela e aos filhos concederam uma última visita. O pesado carro levou-o ao cadafalso. Ela tornara-se a Viúva Capeto.

A rainha tranformara-se, aos 38 anos em uma exausta e pálida matrona, presa a uma cela. A criada da guardiã, uma pobre mocinha de campo, Rosália Lamorlliére, não sabia escrever, mas fez a mais comovente narrativa dos últimos 77 dias da rainha:

– Quis ajudá-la a despir-se, porém ela respondeu
– "Muito agradecida, minha filha, desde que não tenho mais nada, eu me sirvo a mim mesma"

Seus fiéis amigos e os de sua mãe movimentaram-se, porém seus parentes próximos, não mexeram uma palha para salvá-la.

Quando compareceu ao Tribunal, era uma mulher velha, de cabelos brancos, doente, sofrendo continuas e graves hemorragias. Foi quando lançaram-lhe a mais pérfida infâmia. Encontrando o menino masturbando-se, o chamado vício dos "plaisirs solitaires", o infeliz justificou-se ou foi sugerido que aprendera com a mãe e a tia. Interrogatórios foram aplicados ao menino de 8 anos, à irmã de 15 anos e a madame Elizabeth. Durante todo o processo ela não fraquejou. Ao horror da acusação incestuosa, quando interpelada seu silêncio respondeu:

" – Se não respondi é porque a natureza se recusa a responder a semelhante acusação dirigida a uma mãe! Apelo para todas as mães que possam estar nesta sala."

As mulheres ali reunidas sentiram-se solidárias com a rainha, pois a infâmia contra ela lançada atingia todo o sexo. Sua condenação à morte, foi concedida por unanimidade.

Na pequena alcova, à luz de duas velas, pediu papel e tinta e escreveu uma carta para Elizabeth, irmã de seu marido, única protetora de seus filhos. Não foi entregue, e a carta desapareceu durante 20 anos. Quando Luís XVIII, outro Bourbon, irmão do soberano falecido, subiu ao trono, recebeu como presente.

A carreta esperava, puxada por um forte e lento cavalo de carroça. Luís XVI fora conduzido em carruagem fechada. Sentou-se em tábuas sem almofadas. Mais tarde, madame Roland, Danton, Robespierre, Fouquier, Hérbet, todos que a mandarm à morte, fizeram, eles mesmos, idêntico percurso, sentados na mesma tábua dura.

Os carrascos agarram-na, deitam-na sobre o patíbulo, a cabeca sobre a lâmina, um puxão na corda, o brilho do cutelo descendo, um baque surdo. Sanson agarra a cabeça pelos cabelos e erguendo-a mostra-a para o povo, que berra: – Viva a República! As sepulturas não foram assinaladas. O único indício para localizar os corpos reais era de que a Convenção ordenara que fossem cobertos com cal viva. Depois de dias de escavação, encontraram um caixão de madeira, já carcomido, e estabelecido ficou que o punhado de pó fora daquela:
  • "que no seu tempo era considerada a soberana da graça e da elegância e, mais tarde, uma rainha destinada e escolhida para todas as dores". (1755-1793)


Origem: 'Mulheres que marcaram a humanidade' de Lúcia Pimentel Góes