segunda-feira, 6 de julho de 2009

Sherazade

Ele, o sultão de todas as índias, descobre-se enganado pela mulher, em revelação de seu irmão, rei da Grã-Tartária, que fora igualmente traído por sua esposa. Acabrunhado diante de tanta infâmia, abraça o irmão e o convida a renunciar ao mundo e à pompa que o envolve, escondendo assim, o comum infortúnio. Proposta aceita, partem sob a promessa de que regressariam se encontrassem alguém ainda mais infeliz que ambos, convictos de que todas as mulheres são naturalmente levadas pela infâmia e que não podem resistir a sua inclinação.


À beira da praia ouviram um horrível barulho, do lado do mar, seguido de um arrepiante grito que os encheu de medo. As águas abriram-se, e elevou-se nos ares, como grossa coluna negra, um desses gênios malignos, malfeitores e inimigos mortais dos homens. Imenso gigante, tendo na cabeça uma grande caixa de vidro, cerrada com quatro fechaduras de aço fino.

Abriu-as e, então, surgiu dela uma dama ricamente vestida e adornada, senhora de grande beleza. O gênio a ela se dirige, revelando tê-la arrebatado no dia de suas núpcias e, desde então, sempre tê-la amado. Em seguida, pede para repousar sua cabeça em seus joelhos, o que faz caindo em sono profundo.

Os dois príncipes descobertos pela mulher, que lhes faz um pedido atroz, os anéis por ela possuídos e guardados, ao todo 98, eram os anéis de todos os homens a quem prestara favores. Com os deles, teria a centena completa, há muito almejada. Convencidos de que o gênio era para lastimar e mais infeliz do que eles, regressaram aos seus estados, e nada os impediria mais de se casarem novamente.

O Sultão de todas as índias manda estrangular a sultana, convencido de que não havia mulher honesta. Para prevenir futuras infidelidades, resolveu casar com uma, cada noite, estrangulando-a no dia seguinte. O eco dessa desumanidade tomou conta do reino. Só se ouviram choros e lamentações por toda parte.

O grão-vizir, tinha duas filhas, uma bem dotada, mas a outra de ânimo superior, aguçado espírito, admirável perspicácia. Lia muito e tendo memória prodigiosa, nada lhe escapava de tudo quanto lia. Sua beleza, incomparável; sua virtude, excelente. Ela insiste e consegue que o pai a apresente como a próxima nubente do Sultão. Sherazade apresenta um plano à irmã, e com a anuência dela passam a executá-lo. Obtendo a permissão do Sultão, a irmã deitaria, também, na câmara nupcial.

O Sultão dormiu com a bela jovem, e a irmã, na cama preparada fora do estrado. Esta, uma hora antes do romper do dia, obedecendo ao combinado, acordou a nubente, que obtém então licença para satisfazer a irmã, contando um agradável conto. Começa a narrar e pára só ao surgir da aurora. O Sultão, preso pelo encantamento das palavras e movido por sua curiosidade, concede-lhe a vida por mais um dia. Assim noite após noite, aurora sucedendo a aurora, Sherazade prossegue e reinicia seu contar.

Assume o risco de morrer, para resgate da imagem da mulher, perdida pela infidelidade de algumas. Ela, pela palavra, salva a espécie feminina, Ela, que tão magicamente tramou as horas da noite, infiltrou o desejo da curiosidade do rei, desenrolando o novelo das milhares de malhas de intrigas, e vinte e tantos séculos após sua morte foi nominada a "tecelã das noites". Mil e uma noites transcorreram, e o Sultão renovara-se: mansidão, admiração, bondade tinham-lhe ganho o coração.

Ele reverenciou a sabedoria da companheira, reconheceu sua Memória inesgotável, sua coragem heróica, declarando:
"Eu bem vejo, adorável mulher, que vós sois inesgotável nas vossas pequenas histórias: há já muito tempo que vós me divertis; vós haveis aplanado a minha cólera, e eu renuncio de boa vontade, em vossa atenção, à lei cruel que eu tinha imposto; ficais inteiramente perdoada, e eu quero que sejais considerada como a libertadora de todas as jovens que deviam ser imoladas ao justo ressentimento."

O Sultão e a adorável e sábia princesa receberam mil louvores e mil bençãos de todos os povos do Império das Índias. Ela, por sua extraordinária memória, utiliza a palavra para fabular, para encantar, para despertar, para transformar, para salvar, para ressuscitar, para vincular, para tramar, para apaziguar, para amar...

do livro 'Elas – Mulheres que marcaram a humanidade' de Lúcia Pimentel Góes